quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Pintura portuguesa - Alfredo Keil.wmv

De uma crónica no Diário de Lisboa em  20/9/1990
Que horas são na aldeia...?

Acordou, num repente, ao som do relógio do campanário da igreja: uma só badalada, desfeita por toda a aldeia, um silêncio escuro a cobri-lo da cabeça aos pés.
«Que horas serão...?» pensou, no descanso das férias, o verde do Minho totalmente escondido dos
seus olhos. »Bem-continuou a monologar, tanto pode ser uma hora como meia hora de qualquer hora
desta madrugada tão quieta...Ora eu deitei-me era quase meia noite. Será meia noite e meia hora...?
Divertido, os pés encavalitados um no outro, a nuca sob as  mãos, decidiu-se esperar por nova badalada. E a rir-se muito dentro de si:  »Bastava acender a luz e pegar no meu relógio de pulso.
Mas não! Férias são férias-e assim é que está bem!Sou mesmo doido de todo ...»
Esperou, um cigarro nos lábios,o cinzeiro sobre o peito-e, novamente de surpresa, o relógio do
campanário atirou com nova badalada pela aldeia fora.
E ele, amachucando o cigarro no cinzeiro: »Ora vejamos... se há pouco ouvi uma badalada,
e pensei que era meia noite e meia hora, agora ouvindo esta nova badalada, só posso concluir
que é uma hora.Mas...»
Sentou-se na cama,  arrumando cinzeiro e cigarro na mesinha de cabeceira, os olhos interrogando
a escuridão do quarto: «Mas não! A primeira badalada que ouvi bem poderia ser a da uma hora-
e esta última a da uma hora e meia...Pois é: só quando aquele estupor de relógio soar novamente
é que saberei, na verdade, que horas são!. Esperemos...»
Deitou-se, o lençol pelo peito, os olhos no tecto invisível- e adormeceu, a atenção fatigada, sem
ter sabido as horas daquela quieta madrugada.