quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Do livro "Cartas a Columbano"  de M.Teixeira Gomes (páginas 7 e 8.)ARGEL,20-1-26

Querido amigo;

O primeiro mês da minha viagem foi todo em perpétuo mobile: cinematográfico.    

Admirado estou de que tão rápidas e numerosas mutações me não  aborreçam.

É que o meu caso assemelha-se ao do prisioneiro liberto após o cumprimento de

longa e rigorosa pena. Tudo me alegra e diverte. Outrora  viajei sempre devagar,

por um secreto sentimento de dignidade. Correr é ridículo,salvo nas exibições

desportivas. Como se pode ter a consciência daquilo que se vê, se andarmos a galope.

Falar, por exemplo, das impressões da paisagem, que ficam de uma correria em

automóvel, é pura mistificação: para os outros e para nós mesmos...

Em Setúbal o meu vapor, o "Zeus" fez três ou quatro avançadas para a barra,

que fica pelo mar fora, muito longe da cidade, e, como a barra não desse saída,

foram outros tantos regressos, a horas  diversas e luzes diferentes. O panorama

ali é soberbo. Levanta-se a costa quase a pique, altíssima  e recortada, feita de argila

vermelha, ferruginosa, toda tinhosa de vegetação verde-negra, e dominada pelo esporão

onde assenta o formidável castelo de Palmela; depois os castelos de S.Filipe e do Outão

e, na espessura da Arrábida, o convento desesperadamente ermo, com as celas dispersas,

a escorregarem para o mar.

.......................