quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Do livro "Cartas a Columbano"  de M.Teixeira Gomes (páginas 7 e 8.)ARGEL,20-1-26

Querido amigo;

O primeiro mês da minha viagem foi todo em perpétuo mobile: cinematográfico.    

Admirado estou de que tão rápidas e numerosas mutações me não  aborreçam.

É que o meu caso assemelha-se ao do prisioneiro liberto após o cumprimento de

longa e rigorosa pena. Tudo me alegra e diverte. Outrora  viajei sempre devagar,

por um secreto sentimento de dignidade. Correr é ridículo,salvo nas exibições

desportivas. Como se pode ter a consciência daquilo que se vê, se andarmos a galope.

Falar, por exemplo, das impressões da paisagem, que ficam de uma correria em

automóvel, é pura mistificação: para os outros e para nós mesmos...

Em Setúbal o meu vapor, o "Zeus" fez três ou quatro avançadas para a barra,

que fica pelo mar fora, muito longe da cidade, e, como a barra não desse saída,

foram outros tantos regressos, a horas  diversas e luzes diferentes. O panorama

ali é soberbo. Levanta-se a costa quase a pique, altíssima  e recortada, feita de argila

vermelha, ferruginosa, toda tinhosa de vegetação verde-negra, e dominada pelo esporão

onde assenta o formidável castelo de Palmela; depois os castelos de S.Filipe e do Outão

e, na espessura da Arrábida, o convento desesperadamente ermo, com as celas dispersas,

a escorregarem para o mar.

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domingo, 2 de agosto de 2020

Crónica de Pedro Alvim no Diário de Lisboa de 20/9/90

QUE HORAS SÃO NA ALDEIA...?

Acordou, num repente, ao  som do relógio do campanário da igreja: uma só badalada,
desfeita por toda a aldeia, um silêncio escuro a cobri-lo da cabeça aos pés.
    "Que horas serão...?" -pensou , no descanso das férias, o verde do Minho totalmente
escondido dos seus olhos.
     "Bem-continuou intimamente a monologar-tanto pode ser uma hora como meia hora
de qualquer hora desta madrugada tão quieta... Ora eu deitei-me era quase meia noite.
Será meia-noite e meia hora...?
      Divertido, os pés encavalitados um no outro, a nuca sob as mãos, decidiu-se esperar
por nova badalada. E a rir-se muito para dentro de si: "Bastava acender a luz e pegar
no meu relógio de pulso. Mas não! Férias são férias-e assim é que está bem!
Sou mesmo doido de todo..."
      Esperou, um cigarro nos lábios, o cinzeiro sobre o peito-e, novamente de surpresa,
o relógio do campanário atirou com nova badalada pela aldeia fora.
 E ele amachucando o cigarro no cinzeiro.
       " Ora vejamos... Se há pouco ouvi uma badalada,e pensei que era meia noite
e meia hora, agora ouvindo esta nova badalada, só posso concluir que é uma hora.
   Sentou-se na cama, arrumando cinzeiro e cigarro na mesinha de cabeceira, os olhos
interrogando a escuridão do quarto:  "Mas não! A primeira badalada que ouvi bem
poderia ser a da uma hora-e  esta última a da uma hora e meia... Pois é: só quando
aquele estupor de relógio soar novamente é que saberei, na verdade, que horas são!
      Esperemos...  Deitou-se, o lençol pelo peito,os olhos no tecto invisível- e adormeceu,
a  atenção fatigada, sem ter sabido as horas daquela quieta madrugada.


sábado, 25 de julho de 2020

New-York, Années 1920 : Gershwin, Rachmaninov, Duke Ellington

Seguindo a floresta os homens lá iam,  primeiro os dois brancos que eram os senhores, depois os negros, um deles carregando um fardo de palha e o elefantinho sentindo esse rastro violento
da lembrança da mãe. Os homens lá iam e o elefantinho, a caminho da cidade, a caminho do
mar onde um navio o esperava para ser embarcado para longe, bem longe, bem longe da selva.
Lá  ia o elefantinho a caminho do jardim zoológico de Hamburgo, cercado de negros com dois
brancos ao comando, lá ia o elefantinho, deixando o lago barrento e macio definitivamente
para trás. Dos seus olhos dóceis e doces escorria uma enorme tristeza.   
                                                                             
( Bafatá- Guiné, Junho 1960)

Do livro A CAMINHADA- Livro de Vivências de Sidónio Muralha

quarta-feira, 15 de julho de 2020

       Perfilados de medo

Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos  salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura,

Aventureiros já sem aventura,
perfilados   de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

pág. 204
Poesias Completas de Alexandre O´Neill
1951/1981
(alguma analogia com a nossa situação actual? talvez...)

quarta-feira, 13 de maio de 2020

fio de prumo: Ferias idilicas

fio de prumo: Ferias idilicas: Muito possivelmente já conhecem o texto que vou publicar. Mas eu recebi-o hoje deu-me um ataque de riso imenso. Aliás, depois de 125 dias c...

domingo, 26 de janeiro de 2020

BOMTEMPO | Piano Concerto No1 (4/4)

Palavras de Vergilio Ferreira

"Vejo-me, sinto-me, reconheço-me um mundo fechado, indissolúvel, olho as minhas mãos, sei-me,
penso-me, reconheço-me uma mulidão de factos,de ideias, de sensações que me foram habitando,
sinto-me eu, um todo, indivisível e irredutível, um ser instalado numa inefável eternidade necessária,
um ser com um quê único,aquele que sou para os outros como os outros o são para mim no seu tom
de voz,no seu modo de gesticularem, na pessoa tão única, tão nítida, tão fascinante, que me causa
terror. Ah, a terrível dificuldade de apanhar na palavra esta evidência tão flagrante, esta realidade
tão vivaz e tão fluida --- esta realidade que dura e nos persegue e está ao pé de nós depois de
alguém nos morrer...     
                 Vergílio Ferreira